Graça ao invés de pedras

Por ser José, seu marido, um homem justo, e não querendo expô-la à desonra pública, pretendia anular o casamento secretamente. Mateus 1.19

 

“No meio do caminho tinha uma pedra”. O verso do poema de Carlos Drummond de Andrade se eternizou na literatura brasileira e suscitou interpretações diversas sobre o texto poético. Muitos se debruçaram na tentativa de compreender o que seria, afinal, essa pedra no meio do caminho. Em uma entrevista, o próprio Drummond afirmou que a pedra assumiu aspectos existenciais e filosóficos que nunca haviam passado por sua cabeça.

Não cabe aqui discutir as possibilidades controversas de interpretação sobre a pedra do poeta mineiro, mas – ao pensar em José, Maria e o bebê Jesus – ocorre-me que, na estrada da graça, existem pedras no caminho.

Maria estava prometida a José em casamento. A relação deles consistia em uma espécie de noivado de nossos tempos. Mas, no meio do caminho, uma gravidez. Para piorar, o filho não era do noivo. Nessa situação, a sorte de Maria já estava traçada: completa desmoralização pública e apedrejamento até a morte. Mas José, homem justo, escolhe a graça ao invés das pedras. Apesar da Lei o respaldar a atirar a pedra e a condenar Maria à morte pelo suposto adultério, José – pela graça – não quis difamá-la e pretendia deixá-la secretamente para que a culpa não caísse sobre sua noiva, mas sobre si mesmo.

Interrompo o enredo da gestação de Jesus para avançar um pouco mais de 30 anos no tempo. Lembro-me de outra história. Certa vez um grupo de homens trouxe à presença de Jesus uma mulher surpreendida em ato de adultério. Esbravejaram diante do Mestre todos os incisos e parágrafos da lei para acusar a mulher, de tal forma que não houvesse outra saída, exceto: as pedras até a morte. Apesar do alvoroço crescente e das acusações insistentes, Jesus não se intimida e retruca uma de suas célebres frases: Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nela (João 8.7). Vemos agora o homem Jesus, o qual antes era a causa de um possível apedrejamento de sua mãe, escolhendo a graça ao invés das pedras.

Ambas as histórias se entrelaçam não apenas pelo parentesco entre os personagens José e Jesus, mas principalmente pela escolha em comum: a graça. A graça de não difamar o outro, de não estar no lado dos acusadores, mesmo que a pressão da sociedade ou a lei garantissem o direito de apontar o dedo e de lançar as pedras. A graça não se revela como um direito nosso, mas como um ato de generosidade, um favor imerecido de alguém sobre o outro. José e Jesus demonstram a graça em suas atitudes ao abandonarem as pedras e exercerem a misericórdia, cumprindo assim o que o próprio Cristo afirma, “desejo misericórdia, não sacrifícios” (Mateus 9.13).

Para concluir, retomo a história de José. Sua ideia de abandonar secretamente sua noiva ficou apenas na intenção, pois logo após um anjo do Senhor apareceu para explicar toda a situação. Contudo, os pensamentos de José revelaram o caráter de um homem semelhante ao do próprio Cristo. Um caráter de alguém que enxerga graça onde só se vê pedras.